domingo, 16 de dezembro de 2007

Profundamente aDORmecido

Profundamente

Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Texto extraído do livro "Antologia Poética - Manuel Bandeira", Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2001, pág. 81.

Faz uns dias já que tenho pensado em ir a um psiquiatra. Aliás, eu acho que as pessoas vão cada vez mais aos psiquiatras. Será que isso tudo é só um plano de marketing muito bem feito, e nós sentimos necessidade, de repente, de irmos ao psiquiatra movidos por uma espécie de consumo fundamentalmente íntimo despertado por alguma mensagem subliminar do além? Será que eles têm parte com...? Sei lá, pode ser que sim. Mas o fato é que tenho sentido em mim um descontrole. E o descontrole, a não ser em relação ao meu humor, não costuma fazer parte de mim. Mas meu descontrole não é psicopático, nem um grande risco para a sociedade. De modo que não tenho saído por aí destruindo a cidade, e nem mesmo atirando com uma 38 comprada em mercado negro. Meu descontrole é bem mais íntimo e constrangedor, e é movido por uma ansiedade que em algum lugar dentro de mim encolhe-se sorrateiramente, mas, na hora certa, transforma-se em um elefante desequilibrado, em um fera devoradora. Meu descontrole é docinho de tudo. Ele faz-se numa transbordante lata de leite condensado, que geralmente ganha um toque de creme de leite e uma colher bem cheia de Nescau, do novo de latinha estilosa. Basta lembrar de algo ligeiramente terrível para que eu vá até a cozinha preparar o meu calmante de 8 milhões de calorias.
Tudo bem, pode até ser meio engraçadinho. Mas é tão estranho estar diante de algo que não se pode controlar. É tão angustiante saber que se eu não repetir aquela rotina, na hora exigida por algo que sou eu mesmo, pensamentos intrusos começam a me consumir fazendo-me acreditar que estou errado e que o prazer é o mais importante que tudo. Intriga-me. Afinal de contas sou eu contra mim mesmo. E pode isso? Sermos dois e não um. Será normal? É tão duro de entender...
Bem, mas o que me resta é que a alegria que busco na mistura mágica é tão fugaz quanto doce. E percebo que, na verdade, com isso eu busco revestir mais um espaço em mim tomado pela tristeza. A dor do existir é quase tão aguda quanto a Meredith Monk. E as suas conseqüências, em mim, têm sido mais doces do que posso suportar, vezenquando. Não entendo o porquê de querer um prazer para me alegrar quando a sua efemeridade só reafirma a dor. E, além de tudo, como disse uma amiga amada, a alegria não é nada pedagógica, então porque essa busca que de tão avançada torna-se física?
Ah, amiga amada, como seria bom o seu sal aqui em mim, não me salvando, porque, afinal de contas, nem sabemos se as coisas têm salvação, mas me acalentando, assim como eu gostaria de fazer contigo. Um sal com gosto de tempo antigos, com gosto da leveza do tempo em percebíamos, um no outro, quando havíamos cortado os cabelos. Um sal Profundamente salgado, para que pudesse esquecer um pouco desse doce que me consome agora. Um sal que pudesse me despertar para aquele adormecido equilíbrio, quando ainda não precisava pensar na saúde, nem no dinheiro para a comida. Ah, porque tudo adormeceu profundamente? Já descobriu Bandeira?

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