terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Milágrimas e pensar

Milágrimas
(Alice Ruiz e Itamar Assumpção)
em caso de dor ponha gelo
mude o corte de cabelo
mude como modelo
vá ao cinema dê um sorriso
ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo

se amargo foi já ter sido
troque já esse vestido
troque o padrão do tecido
saia do sério deixe os critérios
siga todos os sentidos
faça fazer sentido
a cada mil lágrimas sai um milagre

caso de tristeza vire a mesa
coma só a sobremesa coma somente a cereja
jogue para cima faça cena
cante as rimas de um poema
sofra penas viva apenas
sendo só fissura ou loucura
quem sabe casando cura ninguém sabe o que procura
faça uma novena reze um terço
caia fora do contexto invente seu endereço
a cada mil lágrimas sai um milagre

mas se apesar de banal
chorar for inevitável sinta o gosto do sal do sal do sal
sinta o gosto do sal
gota a gota, uma a uma
duas três dez cem mil lágrimas
sinta o milagre
a cada mil lágrimas sai um milagre
cante as rimas de um poema
sofra penas viva apenas
sendo só fissura ou loucura
quem sabe casando cura ninguém sabe o que procura
faça uma novena reze um terço
caia fora do contexto invente seu endereço
a cada mil lágrimas sai um milagre



Sabe, sempre me achei um sujeito racional. Isso sempre foi claro para mim. Obviamente que não sou de pedra, nem de aço. Ser racional não quer dizer ser duro ou insensível. Acredito que sei me doar, me deixar levar pelo que sinto. Mas ultimamente tenho estado muito frágil. Tenho me sentido pouco dono de mim. Dia desses, chorei a ponto de me constranger, e tentar controlar as lágrimas quando elas se acumulam em baldes... tentar impedir que escorram quando fazem pressão para ensopar a alma, para mim foi impossível...
Lembro-me que quando eu era pequeno eu chorava fácil, era muito doído de sentimentalismo, me ofendia por qualquer leve agressão. Mas quando eu chorava, eu lembro que eu gostava de chorar, gostava de sentir o gosto da dor estampado em meu rosto, gostava de olhar no espelho e ver, cara a cara, as transformações advindas do estado de dor. Mas eu me lembro, que quando eu me olhava no espelho eu sentia que aos pouco as lágrimas iam sanando, e não era isso que eu queria... eu queria poder vê-las, aos jatos, escorrendo de mim, como seu eu pudesse admirar a minha própria dor. Não a dor física, essa eu sempre detestei, mas a dor de verdade.
Com o tempo, essa minha admiração narcisista pela dor foi desaparecendo, ao menos da minha consciência. Esse gosto pelas lágrimas foi aos poucos dando lugar a um estado de pseudo equilíbrio racional, e eu fui acreditando na racionalidade como solução.
Não embrutecido e amargo, mas reflexivo...
Claro que derramei lágrimas pelos caminhos que trilhei. Sofri, desesperei-me e chorei um bocado. Mas não me lembro de muitas ocasiões assim... algumas.
Dia desses, porém, sofri algo como uma epifania na narrativa de minha vida. Alguma coisa dentro de mim transformou-se em uma bolha que surge de uma pequena ferida, mas vai se enchendo de água e sal até recobrir todos os meus órgãos e explodir pelos meus olhos. E controlar o vazamento dessa bolha, não é algo em questão... ela exige escorrer até que lave tudo.
E olhar no espelho, como fazia quando era criança, agora não é mais tão engraçado. Não quero mais me ver como um outro para quem eu olho e faço tudo sanar pela força da razão. Quero pensar nas configurações do meu eu, sendo eu mesmo. Não quero parar de chorar, mas quero pensar e repensar os parâmetros que movem as lágrimas.
Quando lavo algo, gosto que o tecido não fique comprometido, e gosto de tirar a sujeira e não escondê-la.
Que o gosto do sal de agora não me seduza pela beleza da dor, mas ative as sensações e as reflexões.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A DANÇA ENTRE GRADES DE GISELA



Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel...
(Mário Quintana)

Costumamos atribuir valor semântico poético a diversas coisas que não são exatamente a poesia em forma literária. Tomamos o efeito de sentido, envolvente e desestruturante, que a poesia causa e aplicamos ao mundo, à vida, aos homens e aos objetos que nos cercam. É como escutar a voz doce, suave e, por vezes, desconcertante de Quintana, nos falando sobre as cores, os sons e os traços de nosso mundo. É como olhar para o mundo, notar nele a agudez rígida que denota, mas ainda assim extrair dessa observação cores suaves e delicadas.
Essa questão nos é explicitada por Quintana no poema que tomo como epígrafe. O eu do poema quer buscar dentro de si uma força que de tão grande e implacável seja simples. Algo que diga tanto quanto o próprio sentido do dizer pouco. Mas, no entanto, limita-se pelas arestas rudes do mundo. E essa limitação não é em nada negativa, é só uma constatação do inevitável. Parece-me que um universo de questões muito próximas a essas estão presentes no trabalho de Gisela Waetgne, que compactua da força dinâmica da poesia de Quintana e concebe em sua obra esse mesmo efeito lírico.
Visitamos(Grupo da pós-graduação em Artes Visuais durante a disciplina Leitura da obra de Arte, ministrada pela professora Monica Zielinsky) o atelier de Gisela numa tarde na qual a artista se dispôs a mostrar-nos seus trabalhos. Buscou certa cronologia dentro de sua produção, e nos chamou a atenção para o seu caminho enquanto artista, tanto do ponto de vista do processo em si quanto dos embates íntimos da própria artista em relação a ele. Gisela mostrou-nos alguns de seus trabalhos reconhecidos, mas também compartilhou conosco obras em processo, as quais ainda não têm um fim determinado podendo, na concepção da artista, tornarem-se ou não obras. A produção de Gisela é constituída por objetos, desenhos e, em sua maioria, pinturas de grande dimensão, recorrentemente permeados por uma espécie de trama, bastante gráfica, constituída por um quadriculado cartesiano ao qual são aplicadas cores em tons pastel.
Essa questão de conhecermos as obras em seu ateliê, ou seja, não exatamente no local que legitima institucionalmente a produção, mas no espaço de criação, aliada a outro ponto com relação ao quê a artista considera e o quê ainda não considera obra, pareceu-me uma problemática bastante relevante para ser refletida em relação à dicotomia entre autor e obra. Para elucidar tal questão, chamo as idéias de Michel Foucault(2001), no texto “O que é um autor?”, conferência feita em 1969, na Sociedade Francesa de Filosofia. Nesta polêmica reflexão, Foucault levanta o questionamento acerca do que vem a ser uma obra e do que vem a ser um autor. Segundo Foucault, um autor não seria necessariamente uma pessoa cotidiana, mas uma espécie de filtro preocupado com a existência, a circulação e o funcionamento de certos discursos no interior da sociedade (2001, p. 274). A preocupação com o modo de articular esses discursos é que resultaria na obra, tendo uma ênfase maior para sua exterioridade do que para sua interioridade, no sentido de que buscaria a sua essência nessa articulação discursiva e não na expressão íntima. Segundo as palavras de Foucault, “ela [a obra] é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante”(2001, p.268). Com tais colocações, o filósofo desmonta a questão do artista enquanto gênio, ou de sujeito de exceção. Foucault parece entender que o autor seria aquele que busca transgredir algo ao mesmo tempo em que leva em conta o contexto que o cerca e os discursos que constituem o seu. De modo que o trabalho artístico é entendido de forma muito mais complexa do que uma inspiração que transformaria um estímulo em obra.
Nesse sentido, não estaria acontecendo exatamente a morte do autor, como se poderia imaginar. Foucault está desmistificando o autor gênio e autenticando o autor como articulador discursivo, esse autor que não depende de uma força individual e oculta, mas que precisa ser capaz de articular sua obra de acordo com o contexto envolvido. Quando anteriormente apontei a questão dessa dicotomia autor e obra na produção de Gisela é porque tenho sugerido que ela domina essas perspectivas foucaultianas.
Em primeiro ponto, de acordo com o que já apontou Foucault, a produção de Gisela apresenta uma ênfase no significante. O conjunto de obras carrega uma identidade que é a questão do quadriculado. Durante a conversa, a artista não mencionou o sentido explícito desse procedimento. Somente um gosto, uma necessidade por utilizá-lo. Desse modo, pode-se notar que há uma preferência por esse elemento, que talvez só mais tarde ganhe sentidos em reflexões posteriores, mas que apresenta esse jogo discursivo de estar presente na “obra”, legitimando parte de sua existência.
Além disso, a questão, já mencionada, em relação ao procedimento da artista ter nos mostrado o que ainda está em processo ao lado daquilo que considera acabado está também muito próxima da reflexão de Foucault. Quando Gisela nos diz que certos trabalhos estão prontos enquanto que em outros ainda permanece uma incerteza, conforme Foucault, ela não está sendo a Gisela cotidiana, simples nome próprio, ela está sendo Gisela-autora, dotada de uma função que lhe é atribuída pelas características na articulação discursiva (Foucault, 2001). Entendo que essa talvez seja a questão mais fundamental para os modos de existência da obra: saber o lugar, o momento e o tempo em que ela existe. Certamente que vários dos trabalhos de Gisela que vimos, inclusive os que estão em processo, poderiam ter sido vistos por nós em uma galeria ao invés de estarem no atelier. Mas é o fato da artista decidir o que existe e onde que tornam a ela e a sua produção, respectivamente nos conceitos de Foucault, autora e obra.
Aliás, observar a obra de um artista dentro de seu ateliê é uma experiência muito interessante, ainda mais quando podemos conhecer, além da produção atual, uma panorâmica da produção do artista. Em um espaço de exposição, a curadoria certamente propõe uma leitura da obra. Seja por meio de um recorte específico, pela disposição das obras no espaço ou mesmo da relação com obras de outros artistas, a observação do fruidor é anteriormente discursivisada pela curadoria. Retomando mais uma vez as idéias de Foucault, pode-se dizer que a curadoria, no caso de uma exposição, também cumpre uma função de autor, uma vez que se torna espécie de filtro discursivo acerca da obra do artista exibido. Na visita ao ateliê de Gisela, suas obras foram mostradas de acordo com a fala da artista, além de estarem dispostas anteriormente, para que pudéssemos observá-las. Por mais que Gisela tenha proposto uma organização para os trabalhos, a situação de informalidade propôs algo mais orgânico do que uma curadoria em si. Essa experiência nos proporcionou uma compreensão diferenciada da obra, talvez mais completa, por termos observado um número maior de obras acompanhadas das narrativas da artista acerca das mesmas, talvez menos profunda, por termos privilegiado uma observação mais panorâmica que profunda. Mas a questão que me parece interessante é notar a diferença entre a acessibilidade direta à obra e a acessibilidade discursivisada por uma curadoria. Não que uma seja melhor que a outra, embora muitas vezes a curadoria ilumine caminhos para ler a obra, mas essa experiência no ateliê de Gisela possibilitou enxergar a obra dentro de uma essência íntima, e extremamente próxima da artista enquanto sujeito, e não somente como autora.
Talvez, nessa essência, os sentidos tenham sido provocados por um viés intimista. Tanto a poesia de Quintana quanto a obra de Gisela Waetge falam sobre a busca por uma delicadeza colorida que compactua um afeto íntimo, e nesse jogo fazem analogia ao contexto, assim como acabam problematizando a própria linguagem empregada, gerando uma metalinguagem. Dentre os diversos sentidos possíveis, Quintana acaba falando sobre a própria poesia, Gisela sobre a pintura. Parece-me que a artista, assim como Foucault que nos questiona instigando a reflexão, convida a refletir sobre o que vem a ser uma pintura. E, além da problematização desse limite, outras parecem surgir.
A trama quadriculada, formada por retas paralelas e perpendiculares, prepara uma estrutura rígida, cartesiana, racionalista, que se comporta como grades que impedem de se ir além, mas que ao mesmo tempo protegem, sendo demarcações do inevitável, como aqueles limites íntimos que parecem maior do que nós mesmos e aos quais não ousamos romper por razões pré-determinadas. As “redes” de Gisela parecem delimitar o contexto no qual sua obra se insere que é esse contexto industrializado por uma trama rígida. No entanto, o que se desenvolve dentro dessa estrutura é absolutamente surpreendente. Ao longo dos trabalhos, a artista compõe métodos diferenciados de aplicação de cor por entre o quadriculado. Ora, aplica gotas de tintas que deixa escorrer, formando outras linhas verticais, junto com aplicação de água, que também escorre pela tinta alternado o tom da pigmentação. Ora, aplica gotas de tinta que faz escorrer em um jogo vertical e horizontal. Os tons das tintas são na maior parte das vezes suaves e diversos, formando um colorido de puro encanto aos olhos. Gisela trabalha as cores com enorme musicalidade, propondo uma harmonia formada por tons consonantes, ordenados por um ritmo incessante. Nessa metáfora, a ação de Gisela ao pintar transforma-se em uma coreografia de dança. Seus movimentos desafiam os limites da estrutura cartesiana, dançando de modo ritmado. As cores aplicadas pela artista ressaltam a liberdade e a intensidade possível dentro das limitações pré-determinadas. É a força poética que ressalta de suas estruturas, instigando, a partir de jogos superpostos de linhas, a reflexão sobre o artista, a pintura e a força significativa da arte.

Referências
FOUCAULT, M. O que é um autor?. IN: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro, São Paulo: Forense Universitária, 2001. Ditos e escritos III. Pág. 264-298.
QUINTANA, M. Quintana de bolso. Seleção Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&M Pocket, 2006.

UM OLHAR PARA HUDINILSON: NARCISIMO E A MÁQUINA DO TEMPO


A questão do olhar na arte contemporânea é bastante desafiadora. Por vezes vemos demais, e sofremos de um eufemismo esvaziado, enquanto em outras, vemos tão pouco que acabamos por esvaziar o contato que a obra pode gerar. Talvez esse olhar fique ainda mais perambulante quando, mesmo contemporânea, a produção artística distancie-se de seu contexto de criação. Isso pode acontecer, por exemplo, quando a obra produzida a partir de uma realidade local, é mostrada desconectada de seu meio, ou quando a obra filia-se a um momento histórico e é exibida em outro. Obviamente que existem diversos contextos possíveis para uma obra. E, em alguns casos, a problemática do contexto torna-se um dos sentidos da própria obra. É isso que parece acontecer com a produção de Hudinilson Jr., mostrada na exposição que leva seu nome no Espaço Zero, com curadoria de Ana Albani de Carvalho e Neiva Bohns. As obras exibidas pela curadoria fazem parte do acervo da Fundação Vera Chaves Barcellos, a qual também é a mantenedora da galeria.
As questões relacionadas ao contexto, na exposição, estão marcadas principalmente por dois pontos em relação às obras: o modo de exibi-las e a distância entre os momentos da produção e da exibição das mesmas. Para aguçar a discussão desses pontos, é conveniente retomar aqui uma reflexão de Jonathan Crary acerca das noções de atenção e distração. Crary aborda tais noções ao refletir sobre a visão na segunda metade do século XIX, e mostra o quanto se modificou a conceitualização dessas noções à medida que a sociedade foi alterando-se e, conseqüentemente, alterou a relação entre a atenção e a distração. Para Crary, a lógica cultural do capitalismo modifica, e isso é inegável, toda a configuração da visualidade. Ou seja, a circulação acelerada que se torna mais e mais freqüente com a efervescência industrial, faz com que a focalização da atenção, antes voltada a uma sociedade configurada por uma visualidade menos veloz, sofra um choque. Para retomar de forma breve as reflexões de Crary, servindo como partida para uma observação acerca da exposição, cito um breve trecho no qual o autor conclui algumas idéias refletindo o final do século XIX:
A atenção e a distração não eram dois estados essencialmente diferentes, mas existiam em um único continuum, e a atenção era, portanto, como a maioria cada vez mais concordou, um processo dinâmico, que se intensificava e diminuía, subia e descia, fluía e refluía de acordo com um conjunto indeterminado de variáveis (CRARY, 2001, P. 87).
Bem, diante de tais apontamentos, seria importante destacar que as diferenças entre atenção e distração não são necessariamente de uma ordem na qual uma é mais importante do que a outra, porém da ordem em que a atenção reflete um foco mais pontual enquanto que a diminuição dela, sendo a distração, amplia esse foco tornando-o mais panorâmico.
Agora voltando a atenção para a exposição de Hudinilson Jr., vejamos o que antes apontei acerca do contexto. A produção do artista, exibida na exposição, é divida em três salas. A sala principal é constituída basicamente por imagens, agrupadas por moldura, resultado da fotocópia de fragmentos do corpo nu do artista, fragmentos esses que foram expostos sobre a máquina, pelo artista, na intenção de fotocopiar-se, assim como fotografias tiradas ao longo do processo de auto-fotocópia do artista, que são exibidas também depois de xerografadas. Ainda na mesma sala, também são exibidos registros de outras ações do artista, assim como fragmentos de seus livros de bordo. As outras salas parecem menos importantes, sendo uma ante-sala com portfólios do artista juntos de um vídeo de uma performance, também de temática corporal, e a outra composta por uma série de recortes, principalmente de homens nus, junto de algumas peças de roupa e calçado que são recobertos por látex e acrílico. A observação que segue estará mais centrada na sala principal, na qual parece estar uma parte mais representativa da obra do artista.
Como já dizia anteriormente, a questão do contexto da obra aparece sob dois aspectos. O primeiro deles refere-se à questão do modo de exibição, talvez escolhido pela curadoria, dos trabalhos. O trabalho do Hudinilson filia-se a uma busca, bastante recorrente na arte contemporânea, de subversão temática e estrutural. Tal subversão apresenta-se na exposição do corpo nu, na fragmentação do corpo, na fragmentação e repetição das imagens, na técnica pouco convencional. A grande questão é que parece que o conjunto de obras da exposição, e agora chamando as idéias de Crary, de um modo geral deveriam apontar para uma distração, em relação ao conjunto de obras do artista, uma vez que se configura como um olhar panorâmico para a produção. A exposição apresenta fragmentos da obra do artista, e não se vê a totalidade do trabalho, mesmo porque se apresenta um recorte que é o da coleção da fundação citada. A questão que gera um desacordo com essas outras apontadas é o fato de que o modo escolhido para se exibir as imagens cria certa tensão que parece nem sempre fazer parte do próprio trabalho. O agrupamento em blocos de imagens fechados por uma moldura alude a uma atenção, no sentido de Crary, que talvez crie certo atrito em relação ao recorte panorâmico da obra. Não digo, contudo, que o trabalho não deveria gerar atenção no momento do olhar, porém os agrupamentos de imagens impedem a naturalidade da atenção para uma imagem específica, forçando a atenção para o grupo delimitado. Desse modo, o choque entre atenção e distração gerado pelo modo de mostrar o trabalho, em certo aspecto, compromete certo jogo de atenção e distração inerente ao trabalho em si.
A segunda observação surge da constatação de que, observando as imagens certamente é a questão da fotocópia, feita por uma máquina de Xerox, que chama o olhar para a reflexão. É nesse sentido que se instaura a questão entre quais foram os sentidos do trabalho de Hudinilson Jr. no momento da produção e quais serão agora. A priori, é possível supor nas imagens que Hudinilson não escolheu sistematicamente cada parte de seu corpo e cada posição exposta sobre a máquina e nem planejou metodicamente cada um dos resultados, de modo que o processo construiu-se sob uma distração, embora tivesse como pressupostos dois pontos de grande atenção. Um deles certamente é o corpo. Hudinilson está rodeado por um contexto de ditadura militar, de repressão. A busca pela liberdade corpórea vem como um modo de reagir a esses impedimentos que são determinados pelo sistema. Para isso, Hudinilson busca o narcisismo como modo de expor aquilo que obrigatoriamente deveria ser resguardado. Sendo assim, a exibição do próprio corpo funciona com uma atenção em discutir os limites possíveis para mostrar um corpo, num momento em que a liberdade de expressão estava comprometida. E, como outro ponto de atenção, não se pode deixar de negar a própria máquina de Xerox, instrumento recém chegado no Brasil na década de 1970, e que proporciona ao artista uma técnica altamente tecnológica. Desse modo, Hudinilson carrega de atenção esses dois pontos discursivos e distrai-se em fotocopiar-se.
Acontece que a carga simbólica dessa subversão proposta, tanto na técnica de poder tecnológico, quanto no grito de liberdade da exibição do próprio corpo nu, tem seu cume significativo nas décadas de 1970 e 1980. Depois disso, a ditadura militar se encerra no Brasil, a liberdade volta a ser comum e a máquina de Xerox torna-se corriqueira, obsoleta como avanço tecnológico. No entanto, estas ligações com o contexto ao invés de se tornarem um problema para a permanência da obra, podem sugerir outra interpretação, que faz com que a produção aconteça ainda hoje, e não seja apenas documentação de algo que foi no momento do surgimento. E, curiosamente, a questão que faz com que o trabalho continue mantendo forte a atenção está ainda vinculada ao corpo e à máquina de Xerox, porém em uma espécie de renovação dos sentidos.
Hoje em dia, quando pegamos um papel fotocopiado, qual é o valor que se atribui a ele? Certamente não o consideramos um documento de grande valia, nem mesmo atribuímos a ele importância perene. É frágil, passageiro, e com tempo de vida determinado. Agora vejamos, Hudinilson imprimiu seu corpo nesse papel. Em um momento que a fotocópia era um instrumento jovem, altivo, tecnológico, assim como o corpo de Hudinilson o era. No entanto, diferentemente do que ocorreria com a fotografia, os sentidos do corpo do artista na fotocópia não permanecem perenes. Com o passar dos tempos, o envelhecimento, inevitável ao corpo humano, também vem marcando-se no registro de seu corpo em Xerox. E quando se olha para a fotocópia, hoje, um paradoxo se deflagra: fragmentos de um corpo atlético, jovem apresentam-se num papel frágil, volátil, mortal. Sendo assim, o passar do tempo fica marcado através daquilo que uma impressão de Xerox fazia surtir em sentidos naquele momento e o que a cópia representa hoje. De tal modo que essa questão é inevitável quando focamos nosso olhar atenciosamente para a relação estrutura e tema da obra.
Nos dias de hoje, Hudinilson apresenta-se como o Narciso que não foi ao encontro de si mesmo, mas que continua acompanhando o passar do tempo e o envelhecer da estrutura na qual vê seu corpo representado. Nesse sentido a máquina de Xerox funciona como uma máquina do tempo, que não impede o tempo de passar, mas que, ao contrário, marca a sua passagem. A passagem do tempo não está expressa no corpo diretamente, mas na atenção do olhar para ele. E, ao mesmo tempo em que gera instabilidade para o corpo que se torna escravo do tempo, como o é para todos os seres humanos, essa questão atribui certa universalidade ao trabalho do artista, ao menos enquanto o toner do Xerox permanecer marcado no papel.