segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

UM OLHAR PARA HUDINILSON: NARCISIMO E A MÁQUINA DO TEMPO


A questão do olhar na arte contemporânea é bastante desafiadora. Por vezes vemos demais, e sofremos de um eufemismo esvaziado, enquanto em outras, vemos tão pouco que acabamos por esvaziar o contato que a obra pode gerar. Talvez esse olhar fique ainda mais perambulante quando, mesmo contemporânea, a produção artística distancie-se de seu contexto de criação. Isso pode acontecer, por exemplo, quando a obra produzida a partir de uma realidade local, é mostrada desconectada de seu meio, ou quando a obra filia-se a um momento histórico e é exibida em outro. Obviamente que existem diversos contextos possíveis para uma obra. E, em alguns casos, a problemática do contexto torna-se um dos sentidos da própria obra. É isso que parece acontecer com a produção de Hudinilson Jr., mostrada na exposição que leva seu nome no Espaço Zero, com curadoria de Ana Albani de Carvalho e Neiva Bohns. As obras exibidas pela curadoria fazem parte do acervo da Fundação Vera Chaves Barcellos, a qual também é a mantenedora da galeria.
As questões relacionadas ao contexto, na exposição, estão marcadas principalmente por dois pontos em relação às obras: o modo de exibi-las e a distância entre os momentos da produção e da exibição das mesmas. Para aguçar a discussão desses pontos, é conveniente retomar aqui uma reflexão de Jonathan Crary acerca das noções de atenção e distração. Crary aborda tais noções ao refletir sobre a visão na segunda metade do século XIX, e mostra o quanto se modificou a conceitualização dessas noções à medida que a sociedade foi alterando-se e, conseqüentemente, alterou a relação entre a atenção e a distração. Para Crary, a lógica cultural do capitalismo modifica, e isso é inegável, toda a configuração da visualidade. Ou seja, a circulação acelerada que se torna mais e mais freqüente com a efervescência industrial, faz com que a focalização da atenção, antes voltada a uma sociedade configurada por uma visualidade menos veloz, sofra um choque. Para retomar de forma breve as reflexões de Crary, servindo como partida para uma observação acerca da exposição, cito um breve trecho no qual o autor conclui algumas idéias refletindo o final do século XIX:
A atenção e a distração não eram dois estados essencialmente diferentes, mas existiam em um único continuum, e a atenção era, portanto, como a maioria cada vez mais concordou, um processo dinâmico, que se intensificava e diminuía, subia e descia, fluía e refluía de acordo com um conjunto indeterminado de variáveis (CRARY, 2001, P. 87).
Bem, diante de tais apontamentos, seria importante destacar que as diferenças entre atenção e distração não são necessariamente de uma ordem na qual uma é mais importante do que a outra, porém da ordem em que a atenção reflete um foco mais pontual enquanto que a diminuição dela, sendo a distração, amplia esse foco tornando-o mais panorâmico.
Agora voltando a atenção para a exposição de Hudinilson Jr., vejamos o que antes apontei acerca do contexto. A produção do artista, exibida na exposição, é divida em três salas. A sala principal é constituída basicamente por imagens, agrupadas por moldura, resultado da fotocópia de fragmentos do corpo nu do artista, fragmentos esses que foram expostos sobre a máquina, pelo artista, na intenção de fotocopiar-se, assim como fotografias tiradas ao longo do processo de auto-fotocópia do artista, que são exibidas também depois de xerografadas. Ainda na mesma sala, também são exibidos registros de outras ações do artista, assim como fragmentos de seus livros de bordo. As outras salas parecem menos importantes, sendo uma ante-sala com portfólios do artista juntos de um vídeo de uma performance, também de temática corporal, e a outra composta por uma série de recortes, principalmente de homens nus, junto de algumas peças de roupa e calçado que são recobertos por látex e acrílico. A observação que segue estará mais centrada na sala principal, na qual parece estar uma parte mais representativa da obra do artista.
Como já dizia anteriormente, a questão do contexto da obra aparece sob dois aspectos. O primeiro deles refere-se à questão do modo de exibição, talvez escolhido pela curadoria, dos trabalhos. O trabalho do Hudinilson filia-se a uma busca, bastante recorrente na arte contemporânea, de subversão temática e estrutural. Tal subversão apresenta-se na exposição do corpo nu, na fragmentação do corpo, na fragmentação e repetição das imagens, na técnica pouco convencional. A grande questão é que parece que o conjunto de obras da exposição, e agora chamando as idéias de Crary, de um modo geral deveriam apontar para uma distração, em relação ao conjunto de obras do artista, uma vez que se configura como um olhar panorâmico para a produção. A exposição apresenta fragmentos da obra do artista, e não se vê a totalidade do trabalho, mesmo porque se apresenta um recorte que é o da coleção da fundação citada. A questão que gera um desacordo com essas outras apontadas é o fato de que o modo escolhido para se exibir as imagens cria certa tensão que parece nem sempre fazer parte do próprio trabalho. O agrupamento em blocos de imagens fechados por uma moldura alude a uma atenção, no sentido de Crary, que talvez crie certo atrito em relação ao recorte panorâmico da obra. Não digo, contudo, que o trabalho não deveria gerar atenção no momento do olhar, porém os agrupamentos de imagens impedem a naturalidade da atenção para uma imagem específica, forçando a atenção para o grupo delimitado. Desse modo, o choque entre atenção e distração gerado pelo modo de mostrar o trabalho, em certo aspecto, compromete certo jogo de atenção e distração inerente ao trabalho em si.
A segunda observação surge da constatação de que, observando as imagens certamente é a questão da fotocópia, feita por uma máquina de Xerox, que chama o olhar para a reflexão. É nesse sentido que se instaura a questão entre quais foram os sentidos do trabalho de Hudinilson Jr. no momento da produção e quais serão agora. A priori, é possível supor nas imagens que Hudinilson não escolheu sistematicamente cada parte de seu corpo e cada posição exposta sobre a máquina e nem planejou metodicamente cada um dos resultados, de modo que o processo construiu-se sob uma distração, embora tivesse como pressupostos dois pontos de grande atenção. Um deles certamente é o corpo. Hudinilson está rodeado por um contexto de ditadura militar, de repressão. A busca pela liberdade corpórea vem como um modo de reagir a esses impedimentos que são determinados pelo sistema. Para isso, Hudinilson busca o narcisismo como modo de expor aquilo que obrigatoriamente deveria ser resguardado. Sendo assim, a exibição do próprio corpo funciona com uma atenção em discutir os limites possíveis para mostrar um corpo, num momento em que a liberdade de expressão estava comprometida. E, como outro ponto de atenção, não se pode deixar de negar a própria máquina de Xerox, instrumento recém chegado no Brasil na década de 1970, e que proporciona ao artista uma técnica altamente tecnológica. Desse modo, Hudinilson carrega de atenção esses dois pontos discursivos e distrai-se em fotocopiar-se.
Acontece que a carga simbólica dessa subversão proposta, tanto na técnica de poder tecnológico, quanto no grito de liberdade da exibição do próprio corpo nu, tem seu cume significativo nas décadas de 1970 e 1980. Depois disso, a ditadura militar se encerra no Brasil, a liberdade volta a ser comum e a máquina de Xerox torna-se corriqueira, obsoleta como avanço tecnológico. No entanto, estas ligações com o contexto ao invés de se tornarem um problema para a permanência da obra, podem sugerir outra interpretação, que faz com que a produção aconteça ainda hoje, e não seja apenas documentação de algo que foi no momento do surgimento. E, curiosamente, a questão que faz com que o trabalho continue mantendo forte a atenção está ainda vinculada ao corpo e à máquina de Xerox, porém em uma espécie de renovação dos sentidos.
Hoje em dia, quando pegamos um papel fotocopiado, qual é o valor que se atribui a ele? Certamente não o consideramos um documento de grande valia, nem mesmo atribuímos a ele importância perene. É frágil, passageiro, e com tempo de vida determinado. Agora vejamos, Hudinilson imprimiu seu corpo nesse papel. Em um momento que a fotocópia era um instrumento jovem, altivo, tecnológico, assim como o corpo de Hudinilson o era. No entanto, diferentemente do que ocorreria com a fotografia, os sentidos do corpo do artista na fotocópia não permanecem perenes. Com o passar dos tempos, o envelhecimento, inevitável ao corpo humano, também vem marcando-se no registro de seu corpo em Xerox. E quando se olha para a fotocópia, hoje, um paradoxo se deflagra: fragmentos de um corpo atlético, jovem apresentam-se num papel frágil, volátil, mortal. Sendo assim, o passar do tempo fica marcado através daquilo que uma impressão de Xerox fazia surtir em sentidos naquele momento e o que a cópia representa hoje. De tal modo que essa questão é inevitável quando focamos nosso olhar atenciosamente para a relação estrutura e tema da obra.
Nos dias de hoje, Hudinilson apresenta-se como o Narciso que não foi ao encontro de si mesmo, mas que continua acompanhando o passar do tempo e o envelhecer da estrutura na qual vê seu corpo representado. Nesse sentido a máquina de Xerox funciona como uma máquina do tempo, que não impede o tempo de passar, mas que, ao contrário, marca a sua passagem. A passagem do tempo não está expressa no corpo diretamente, mas na atenção do olhar para ele. E, ao mesmo tempo em que gera instabilidade para o corpo que se torna escravo do tempo, como o é para todos os seres humanos, essa questão atribui certa universalidade ao trabalho do artista, ao menos enquanto o toner do Xerox permanecer marcado no papel.

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