segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A DANÇA ENTRE GRADES DE GISELA



Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel...
(Mário Quintana)

Costumamos atribuir valor semântico poético a diversas coisas que não são exatamente a poesia em forma literária. Tomamos o efeito de sentido, envolvente e desestruturante, que a poesia causa e aplicamos ao mundo, à vida, aos homens e aos objetos que nos cercam. É como escutar a voz doce, suave e, por vezes, desconcertante de Quintana, nos falando sobre as cores, os sons e os traços de nosso mundo. É como olhar para o mundo, notar nele a agudez rígida que denota, mas ainda assim extrair dessa observação cores suaves e delicadas.
Essa questão nos é explicitada por Quintana no poema que tomo como epígrafe. O eu do poema quer buscar dentro de si uma força que de tão grande e implacável seja simples. Algo que diga tanto quanto o próprio sentido do dizer pouco. Mas, no entanto, limita-se pelas arestas rudes do mundo. E essa limitação não é em nada negativa, é só uma constatação do inevitável. Parece-me que um universo de questões muito próximas a essas estão presentes no trabalho de Gisela Waetgne, que compactua da força dinâmica da poesia de Quintana e concebe em sua obra esse mesmo efeito lírico.
Visitamos(Grupo da pós-graduação em Artes Visuais durante a disciplina Leitura da obra de Arte, ministrada pela professora Monica Zielinsky) o atelier de Gisela numa tarde na qual a artista se dispôs a mostrar-nos seus trabalhos. Buscou certa cronologia dentro de sua produção, e nos chamou a atenção para o seu caminho enquanto artista, tanto do ponto de vista do processo em si quanto dos embates íntimos da própria artista em relação a ele. Gisela mostrou-nos alguns de seus trabalhos reconhecidos, mas também compartilhou conosco obras em processo, as quais ainda não têm um fim determinado podendo, na concepção da artista, tornarem-se ou não obras. A produção de Gisela é constituída por objetos, desenhos e, em sua maioria, pinturas de grande dimensão, recorrentemente permeados por uma espécie de trama, bastante gráfica, constituída por um quadriculado cartesiano ao qual são aplicadas cores em tons pastel.
Essa questão de conhecermos as obras em seu ateliê, ou seja, não exatamente no local que legitima institucionalmente a produção, mas no espaço de criação, aliada a outro ponto com relação ao quê a artista considera e o quê ainda não considera obra, pareceu-me uma problemática bastante relevante para ser refletida em relação à dicotomia entre autor e obra. Para elucidar tal questão, chamo as idéias de Michel Foucault(2001), no texto “O que é um autor?”, conferência feita em 1969, na Sociedade Francesa de Filosofia. Nesta polêmica reflexão, Foucault levanta o questionamento acerca do que vem a ser uma obra e do que vem a ser um autor. Segundo Foucault, um autor não seria necessariamente uma pessoa cotidiana, mas uma espécie de filtro preocupado com a existência, a circulação e o funcionamento de certos discursos no interior da sociedade (2001, p. 274). A preocupação com o modo de articular esses discursos é que resultaria na obra, tendo uma ênfase maior para sua exterioridade do que para sua interioridade, no sentido de que buscaria a sua essência nessa articulação discursiva e não na expressão íntima. Segundo as palavras de Foucault, “ela [a obra] é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante”(2001, p.268). Com tais colocações, o filósofo desmonta a questão do artista enquanto gênio, ou de sujeito de exceção. Foucault parece entender que o autor seria aquele que busca transgredir algo ao mesmo tempo em que leva em conta o contexto que o cerca e os discursos que constituem o seu. De modo que o trabalho artístico é entendido de forma muito mais complexa do que uma inspiração que transformaria um estímulo em obra.
Nesse sentido, não estaria acontecendo exatamente a morte do autor, como se poderia imaginar. Foucault está desmistificando o autor gênio e autenticando o autor como articulador discursivo, esse autor que não depende de uma força individual e oculta, mas que precisa ser capaz de articular sua obra de acordo com o contexto envolvido. Quando anteriormente apontei a questão dessa dicotomia autor e obra na produção de Gisela é porque tenho sugerido que ela domina essas perspectivas foucaultianas.
Em primeiro ponto, de acordo com o que já apontou Foucault, a produção de Gisela apresenta uma ênfase no significante. O conjunto de obras carrega uma identidade que é a questão do quadriculado. Durante a conversa, a artista não mencionou o sentido explícito desse procedimento. Somente um gosto, uma necessidade por utilizá-lo. Desse modo, pode-se notar que há uma preferência por esse elemento, que talvez só mais tarde ganhe sentidos em reflexões posteriores, mas que apresenta esse jogo discursivo de estar presente na “obra”, legitimando parte de sua existência.
Além disso, a questão, já mencionada, em relação ao procedimento da artista ter nos mostrado o que ainda está em processo ao lado daquilo que considera acabado está também muito próxima da reflexão de Foucault. Quando Gisela nos diz que certos trabalhos estão prontos enquanto que em outros ainda permanece uma incerteza, conforme Foucault, ela não está sendo a Gisela cotidiana, simples nome próprio, ela está sendo Gisela-autora, dotada de uma função que lhe é atribuída pelas características na articulação discursiva (Foucault, 2001). Entendo que essa talvez seja a questão mais fundamental para os modos de existência da obra: saber o lugar, o momento e o tempo em que ela existe. Certamente que vários dos trabalhos de Gisela que vimos, inclusive os que estão em processo, poderiam ter sido vistos por nós em uma galeria ao invés de estarem no atelier. Mas é o fato da artista decidir o que existe e onde que tornam a ela e a sua produção, respectivamente nos conceitos de Foucault, autora e obra.
Aliás, observar a obra de um artista dentro de seu ateliê é uma experiência muito interessante, ainda mais quando podemos conhecer, além da produção atual, uma panorâmica da produção do artista. Em um espaço de exposição, a curadoria certamente propõe uma leitura da obra. Seja por meio de um recorte específico, pela disposição das obras no espaço ou mesmo da relação com obras de outros artistas, a observação do fruidor é anteriormente discursivisada pela curadoria. Retomando mais uma vez as idéias de Foucault, pode-se dizer que a curadoria, no caso de uma exposição, também cumpre uma função de autor, uma vez que se torna espécie de filtro discursivo acerca da obra do artista exibido. Na visita ao ateliê de Gisela, suas obras foram mostradas de acordo com a fala da artista, além de estarem dispostas anteriormente, para que pudéssemos observá-las. Por mais que Gisela tenha proposto uma organização para os trabalhos, a situação de informalidade propôs algo mais orgânico do que uma curadoria em si. Essa experiência nos proporcionou uma compreensão diferenciada da obra, talvez mais completa, por termos observado um número maior de obras acompanhadas das narrativas da artista acerca das mesmas, talvez menos profunda, por termos privilegiado uma observação mais panorâmica que profunda. Mas a questão que me parece interessante é notar a diferença entre a acessibilidade direta à obra e a acessibilidade discursivisada por uma curadoria. Não que uma seja melhor que a outra, embora muitas vezes a curadoria ilumine caminhos para ler a obra, mas essa experiência no ateliê de Gisela possibilitou enxergar a obra dentro de uma essência íntima, e extremamente próxima da artista enquanto sujeito, e não somente como autora.
Talvez, nessa essência, os sentidos tenham sido provocados por um viés intimista. Tanto a poesia de Quintana quanto a obra de Gisela Waetge falam sobre a busca por uma delicadeza colorida que compactua um afeto íntimo, e nesse jogo fazem analogia ao contexto, assim como acabam problematizando a própria linguagem empregada, gerando uma metalinguagem. Dentre os diversos sentidos possíveis, Quintana acaba falando sobre a própria poesia, Gisela sobre a pintura. Parece-me que a artista, assim como Foucault que nos questiona instigando a reflexão, convida a refletir sobre o que vem a ser uma pintura. E, além da problematização desse limite, outras parecem surgir.
A trama quadriculada, formada por retas paralelas e perpendiculares, prepara uma estrutura rígida, cartesiana, racionalista, que se comporta como grades que impedem de se ir além, mas que ao mesmo tempo protegem, sendo demarcações do inevitável, como aqueles limites íntimos que parecem maior do que nós mesmos e aos quais não ousamos romper por razões pré-determinadas. As “redes” de Gisela parecem delimitar o contexto no qual sua obra se insere que é esse contexto industrializado por uma trama rígida. No entanto, o que se desenvolve dentro dessa estrutura é absolutamente surpreendente. Ao longo dos trabalhos, a artista compõe métodos diferenciados de aplicação de cor por entre o quadriculado. Ora, aplica gotas de tintas que deixa escorrer, formando outras linhas verticais, junto com aplicação de água, que também escorre pela tinta alternado o tom da pigmentação. Ora, aplica gotas de tinta que faz escorrer em um jogo vertical e horizontal. Os tons das tintas são na maior parte das vezes suaves e diversos, formando um colorido de puro encanto aos olhos. Gisela trabalha as cores com enorme musicalidade, propondo uma harmonia formada por tons consonantes, ordenados por um ritmo incessante. Nessa metáfora, a ação de Gisela ao pintar transforma-se em uma coreografia de dança. Seus movimentos desafiam os limites da estrutura cartesiana, dançando de modo ritmado. As cores aplicadas pela artista ressaltam a liberdade e a intensidade possível dentro das limitações pré-determinadas. É a força poética que ressalta de suas estruturas, instigando, a partir de jogos superpostos de linhas, a reflexão sobre o artista, a pintura e a força significativa da arte.

Referências
FOUCAULT, M. O que é um autor?. IN: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro, São Paulo: Forense Universitária, 2001. Ditos e escritos III. Pág. 264-298.
QUINTANA, M. Quintana de bolso. Seleção Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&M Pocket, 2006.

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